segunda-feira, 20 de abril de 2009

Fé em Deus e o feitiço em África

Padre Bonifácio Tchimboto
1. Feitiço, feitiçaria, feiticismo.
Dá-se o nome de feitiço aos objectos ou ingredientes que, como se acredita em ambientes supersticiosos, são depositários de forças sobrenaturais. Estas forças espirituais podem ser, assim se pensa, manipuladas pela mão e pela vontade de homens especializados. O feiticeiro (em Umbundu: onganga) é homem que se serve destas forças para tirar delas proveito a seu favor e, geralmente, contra terceiros. Diz-se feitiçaria a todos os ritos, acções e cultos ligados à manipulação ou à aplicação concreta das forças dos feitiços, seja para efeitos benéficos ou maléficos.
O feiticismo, por sua vez, mais do que acto ou objecto, é toda e qualquer atitude ou credo que o homem dá a estas coisas. Feiticismo passa, por isso, a designar toda uma mentalidade ou cultura que admite como verdade de fé a existência, o poder benéfico ou maléfico dos feitiços.
Os feitiços alegadamente benéficos são usados com mais frequência e com menos ocultismos. No contexto africano, por exemplo, existem feitiços de origem animal (unhas, penas de aves, pedaços de chifre) ou vegetal (folhas, raízes) que, segundo acreditam, são investidos desses poderes mágicos. Habitações, lugares de trabalho, vestes de homens e mulheres, cinturas de crianças, pijamas de enfermos são equipados, muitas vezes, com estes elementos, como protectores contra feitiços maléficos.
2. Ambientes de maior influência
Embora não constitua propriamente uma religião formal, a prática feiticista é muito espalhada entre os africanos, havendo ambientes sociais em que o fenómeno exerce maior influência. Atentos ao conto!
Aconteceu na região do Chongoroi, nos anos 60. Nessa altura os automóveis na aldeia da tia Kamya eram pouco conhecidos. Deles se falava, mas com descrições mágicas e supersticiosas. Pensavam e diziam: “uma grande massa de ferros pesados como um camião não se podia locomover senão por forças mágicas, pelos espíritos de defuntos”. Aconteceu que a tia Kamya atreveu-se um dia empoleirar-se a um camião. Deixemos que ela mesma conte a sua história:
«Foi uma desgraça a minha! Estávamos numa subida. A uma certa altura o nosso camião parecia cansado e quase parava e parou mesmo, não podendo andar. Entreolhamo-nos preocupados. Alguém disse que tal costumava acontecer, mas só ocorria quando a cabeça do camião precisasse de mais “cabeças”. Que cabeças? Cabeças de pessoas – respondeu-me uma companheira de viagem. Desde a carroçaria víamos o motorista agitado. Na verdade, ele estava com uma panela cheia de miolos humanos e um remo, debaixo da sua cadeira, sob a mão direita. Pouco depois, o motorista esticava repetidas vezes a perna e aí o camião começou a gritar, a uivar com muita força: hummm, hummm, humm… O maquinista mexeu, então, na panela do miolo dos mortos e, daí, o camião retomou a marcha. Eu com medo e os companheiros de viagem aplaudiam, festejavam o sucesso do motorista feiticeiro. Jurei não andar mais em camiões...»
O que se passou efectivamente? A ignorância e o medo, enganaram a velha Kamya. Ou seja, ela não sabia que o “humm, humm” vinha da aceleração nem que a panela de miolos era simplesmente a caixa de mudanças. Há casos mais caricatos e ridículos?! Infelizmente, casos parecidos são frequentes e quase todos se resolvem com a fórmula: medo + ignorância = feiticismo. A ignorância e o analfabetismo são dos ambientes mais férteis para plantar feitiços.
Outros ambientes favoráveis aos feitiços são as situações de desespero. A nossa gente, diante da doença e da morte, da incapacidade de gerar filhos, e da perda de bens de fortuna ou de qualquer infortúnio cai irremediavelmente nas crenças feiticistas. Os curandeiros, porque conhecem bem o psiquismo do desespero, aproveitam-se desses momentos para extorquir dinheiro e bens de criação… Não faltam adivinhos que acusam terceiros, rotulando-os de provocadores do infortúnio em causa. Os acusados de feitiçaria são, regra geral, parentes e conhecidos, mas só pessoas mais ou menos abastadas. Daí a segunda fórmula: desgraça + inveja = feitiçaria.
Angola toda tem ainda na memória o caso de crianças queimadas por acusação de feitiços, outras resgatadas de um charlatão que as mantinha em reclusão para, supostamente, curá-las do feiticismo.
3. Feiticismo como desafio grave à fé.
Quem vive sob a psicose de perseguição feiticista vive numa pan-fobia: tem medo de pessoas, de coisas, de acontecimentos… imagina que até no cantar das aves, no trovejar da chuva está um perigo contra a sua saúde, contra seu sucesso laboral, contra sua família. Um olhar longo a ele dirigido pode roubar-lhe sono para longas noites. Recorre, desesperado, aos banhos rituais de protecção, transporta na cintura restos de defuntos ou de animais como receita contra ataques de feiticeiros. Na sua mala trará sempre pedaços de raízes (chamados osyelene) destinados a desviar os perigos.
No seu bairro ou na sua família não faltam pessoas que ele teme, evita e odeia visceralmente, porque, como ele pensa, são portadores do mal, são mais poderosos do que ele e o podem esmagar como uma formiga.
Ora, um coração assim não pode, de modo mais absoluto, albergar a caridade cristã, nem pode produzir relações humanas sãs e civilizadas. Por outro lado, pode uma vida assim desesperada ainda conhecer o que é a virtude teologal da esperança? Ou pode um coração assim ocupado com crenças no poder dos feitiços ter ainda espaço para acreditar no poder de Deus?
Resumindo e concluindo, o feiticismo (ou seja, a fé nos demónios feiticistas) é um atentado à fé e à vida cristã. O feiticismo mina gravemente as virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade. A fé em Deus, como o vemos da experiência do homem bíblico, é uma fé em absoluto. Deus é ciumento (Ex 20,5; ). Ou se adere a Deus e só a Ele, ou se trabalha para o nada: “quem não junta comigo, dispersa” Luc 11,23
O pior – o que veio aumentar a confusão dos simples – está no facto de hoje existirem religiões ou seitas sincretistas. Estas seitas juntam, numa mesma prática religiosa, pedaços de fé e da doutrina cristã com os feiticismos. O templo torna-se, nessas condições, lugar para administrar curas e milagres, investindo muito na manipulação do psiquismo dos débeis, com barulhos, gritos e xinguilamentos. Prometem saúde, sucessos no trabalho, no amor, na família, etc. Massas de pobres e desesperados, porque esperam e experimentam por alguns instantes soluções aos seus problemas, para lá correm e despejam sacos de dinheiros, pensando que quanto mais se multiplicarem os dízimos tanto mais e melhores condições de vida terão. E os charlatães se dizem chamar “santos” ou “santas”, “pastores”, “profetas”, “bispos”...
Deste modo, a mentalidade feiticista tornou-se terreno fértil para cultivar as novas religiões, as religiões sem doutrina nem escolas teológicas, desafiando gravemente a genuína fé e doutrina cristã.

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